O início da guerra entre a Globo e a Record


A Record é a segunda emissora de maior audiência no Brasil, absoluta, desde 2020. A partir de 2007 chegava a ultrapassar o SBT em várias ocasiões, mas caia de novo, no entanto, desde que conseguiu permanecer por 24 horas seguidas a frente da concorrente se mantém nesse patamar.


Uma coisa que diferencia a Record de suas concorrentes é que o dono do canal é também o líder de uma igreja evangélica e as duas coisas caminham juntas, a emissora funciona como divulgadora da Universal que, por sua vez, injeta dinheiro na TV, e essa funciona como uma extensão da instituição religiosa para os telespectadores. Seus fiéis, e de outras congregações protestantes radicais não assistem a Globo.

A compra da Record por Edir Macedo foi efetuada em 1989 por cerca de 45 milhões de dólares que, na época, não tinha praticamente nem uma relevância na audiência do país. Mas assim que assumiu a liderança, o líder a igreja Universal deu início a um projeto de expansão comprando outras emissoras menores para que o sinal chegasse a todos os estados do Brasil, modificou a logo e colocou o canal em posto competitivo no mercado publicitário.

Mas o crescimento da Record foi a ruína do Edir Macedo. Ele foi preso no dia 24 de maio de 1992, após um culto em Santo Amaro, acusado de charlatanismo, curandeirismo (por oferecer curas não comprovadas sob pretexto religioso), e estelionato por, supostamente, enganar pessoas para obter vantagem, no caso, com práticas ligadas à fé.

A denúncia foi feita pelo Ministério Público e o fato bem explorado pela TV Globo, mas se a intenção era utilizar a prisão do dono da concorrente para desmerecer seu canal, não funcionou, pois Edir Macedo ficou preso apenas por 11 dias e soube usar isso a seu favor colocando-se no lugar dos profetas que eram perseguidos no início do cristianismo.

Os anos se passaram e chegamos a 1995, quando o Jornal Nacional da TV Globo exibiu uma gravação feita em 1990 por Carlos Magno de Miranda, um ex-pastor da Universal. Na gravação, Edir Macedo orientava outros pastores sobre estratégias para solicitar contribuições financeiras dos fiéis, utilizando técnicas como desafiar os membros a trazerem valores específicos durante os cultos. O Fantástico e o Globo Repórter também fizeram matérias a respeito.

Carlos Magno de Miranda faltou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que tinha gravado as imagens para alertar a sociedade sobre as práticas da igreja e que, posteriormente, tentou negociar para evitar a divulgação das gravações, mas ao invés de lucrar com isso, ele perdeu dinheiro. Alegou que foi pressionado a entregar uma quantia significativa para não divulgar as imagens.

Obviamente isso foi um prato cheio para a Globo, um banquete, para desmoralizar a concorrente, mas os pastores da Universal começaram a incentivar seus fiéis em seus cultos a promover um boicote chamando a Globo de emissora do diabo. Mas curiosamente plagiou toda a sua programação para tentar ocupar o primeiro lugar no IBOPE.


Em 1995, Dias Gomes escreveu o romance Decadência que tinha como pano de fundo a crise de valores e a busca pela ética, deflagradas a partir dos absurdos cometidos na Era Collor. O personagem que se destaca é o Mariel, um homem que foi adotado criança por uma família rica, carioca, e que ao crescer foi submetido ao cargo de motorista. Ele se apaixouna por uma das filhas do casal e é expulso da casa, já que ninguém aceita tal relacionamento entre ambos.

Desde então, Mariel segue um caminho tortuoso que o faz buscar respostas no misticismo, e cresce rapidamente como um importante pastor evangélico, bem mais preocupado em aumentar o seu império e poder do que propriamente difundir a mensagem divina. E quando alcança o topo do sucesso e do prestígio ele vai por vingança contra os Tavares Branco que o humilharam no passado.


Simultaneamente a venda do livro, a Globo produziu uma minissérie que foi ao ar entre 5 a 22 de setembro daquele ano. Edson Celulari fez o papel de Mariel, em nada se parece com o líder da Universal, mas a sua história sim. Ou melhor, a ascenção meteórica e os meios questionáveis de persuadir os fiéis a dar dinheiro para a igreja. E o personagem chegou a citar frases ditas por Edir Macedo em uma entrevista cedida a revista Veja e no vídeo divulgado pelo Jornal Nacional como: O dinheiro pode ser usado para o bem ou para o mal, e, ou dá ou desce. Foram catorze frases utilizadas na teledramaturgia. 

Antes ainda da estreia da minissérie, os pastores da Universal, já prevendo que seriam expostos pela obra, começaram a atacar antes. Utilizaram os jornais e os programas da Record, como o 25ª Hora, acusando a Globo e algumas alas católicas de trabalharem juntos, depois entraram com um processo contra a emissora e contra o autor Dias Gomes, alegando danos morais e materiais. 


A Globo fez um editorial na abertura da minissérie, declarando que Decadência não pretendia fazer crítica a nenhuma religião ou mesmo a qualquer um de seus representantes. Mas no dia 7 de setembro, em resposta a exibição da minissérie, a Record exibiu o filme canadense de 1992, The Boys of St. Vincent, que fala sobre abuso infantil. Nesse caso, sendo um ataque direcionado mais a Igreja Católica do que a Globo.
E as trocas de farpas não acabaram quando a minissérie cheogu ao fim. No dia 12 de outubro, Sérgio Von Helder, bispo da Universal que apresentava o programa matutino O Despertar da Fé do Reino de Deus, na Record, resolveu protestar contra o caráter religioso do feriado nacional de 12 de outubro. Como as igrejas protestantes consideram a utilização de imagens religiosas e a veneração aos santos, características da liturgia e culto católico, como idolatria, ele levou uma grande imagem de Nossa Senhora Aparecida para o palco e deu socos e chutes na estátua para mostrar que aquilo não era santo coisa nenhuma.


Ele questionou o preço da imagem e se Deus, o Criador do universo, poderia ser comparado a um boneco tão feio, tão horrível, tão desgraçado. No dia seguinte houve uma grande cobertura jornalística sobre o ocorrido apresentando o fato como um ultraje deliberado à padroeira do Brasil, e por conseguinte, à fé católica, e como uma demonstração de intolerância religiosa por parte da Igreja Universal. Diversos jornais e revistas publicaram matéria ou nota a respeito.

Isso gerou indignação nos católicos, mas também e em seguidores de outras religiões, inclusive evangélicas. Houve queixas na polícia e na justiça contra o pastor. Promotores de Justiça e pessoas comuns acionaram judicialmente a Igreja Universal em vários fóruns, sob alegação de crimes como vilipêndio e desrespeito ao direito fundamental constitucional da liberdade de culto. E as cenas dos chutes e os desdobramentos judiciais do caso ficaram nos noticiários durante vários dias.


Não pegou nada bem para a Record. Muitas autoridades se pronunciaram a respeito, como o presidente Fernando Henrique, e até o Papa João Paulo II, na época, que alertou para que os católicos não respondessem ao mal com o mal. O arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales, chegou a responsabilizar o governo federal por ceder concessões públicas de rádio e televisão sem critérios. Padres, bispos e arcebispos lideraram caminhadas, passeatas e concentrações entre fiéis, e a Globo transmitiu uma missa de desagravo à santa. A missa já fazia parte da programação da Globo.

A Universal não se manifestou oficialmente sobre o ocorrido, mas Edir Macedo teria oferecido 10 minutos da programação da Record para os líderes católicos, que recusaram. Já os fièis católicos reagiram de forma mais agressiva, foram registrados atentados, invasões, apedrejamentos, incêndio de templos e ameaças de bomba.

Depois Universal alegou perseguição religiosa por meio da mídia, sem citar nomes, mas o bispo autor de tudo isso disse que a TV Globo tinha lhe transformado num monstro. Ele foi enviado para os Estados Unidos e um ano e meio depois, em 30 de abril de 1997, foi condenado pelo juiz da 12ª Vara Criminal da cidade de São Paulo (SP), Ruy Alberto Leme Cavalheiro, a dois anos e dois meses de prisão por crimes de discriminação religiosa e vilipêndio a imagem.

O bispo foi beneficiado pela falta de clareza no processo, ele voltou ao Brasil em 1998, mas o caso ficou parado. Em novembro de 1999, Von Helder foi condenado novamente, a dois anos de reclusão, com direito a suspensão condicional de pena, por incitar o preconceito religioso.


Alguns cantores fizeram até música sobre o tema, Gilberto Gil lançou em 1997, a canção Guerra Santa, no seu álbum intitulado Quanta. E a dupla Felipe & Falcão gravaram a música Milagre da Santa com base em um boato que surgiu na época. Os rumores eram que o bispo da Universal teria se desviado e se rendido ao catolicismo romano depois de supostas dores na perna que foram milagrosamente curadas. Essa história foi desmentida pela revista IstoÉ na reportagem O Conto da Santa, de Chico Silva. 


Desde então, a Globo não perde oportunidade para denunciar as falcatruas dos líderes de sua concorrente como aconteceu em 2000 e 2002 quando o Ministério Público e a Polícia Federal investigaram Edir Macedo por lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, entre outras matérias nos anos seguintes.

Enquanto que a A Record responde chamando a Globo de invejosa, preconceituosa, e perseguidora dos evangélicos e acusa a emissora de usar a imprensa para atacar Edir Macedo. Em outubro de 2007, no programa jornalístico Domingo Espetacular, a emissora relembrou que a concorrente utilizou declarações públicas do líder da Universal em sua minissérie Decadência sem consentimento.

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