O homem do quarto.

Eu escrevi este texto quando fiz uma oficina de teatro em dezembro de 2007. Dele, partes foram mescladas com textos dos outros alunos que resultou na peça Colheitas. Agora, 12 anos depois, estou de volta aos ensaios para apresentar uma peça e com a possibilidade de escrever outra vez, por isso lembrei desse conto e compartilho contigo agora. A propósito, ele faz parte do livro dEuses! e seus pecados, disponível no Clube de Autores.

Obs. Na mitologia grega, Thanatos é o deus da morte, e Hélio é um titã que representa a personificação do sol.

Era noite de lua cheia, havia poucas nuvens no céu e as que se faziam presentes eram mais similares a uma névoa que propriamente aquelas bolas de algodão de um dia de sol. Talvez porque elas haviam ficado muito pesadas e resolveram se lançar sobre a Terra. Por isso, depois da chuva a escuridão não era tão assustadora, já que o satélite natural de Gaia brilhava em todo o seu esplendor. Cujo brilho iluminava uma rua de paralelepípedos, refletindo sua luz nas pedras molhadas e nas pequenas poças das calçadas estreitas naquela parte do centro antigo da cidade.

Entre os bares e boates, haviam hotéis. Em um deles Thanatos repousava depois de ter tirado algumas peças de roupas da mala e posicionado delicadamente um porta-retratos que ostentava uma foto sua, ao lado do relógio despertador sobre o criado mudo próximo da cama.

Era uma cama simples, que até balançava quando Thanatos se movia. Por isso ele a arrastou mais para o centro do quarto, para que não fizesse barulho, pois já bastava a cama do quarto ao lado, batendo o tempo todo na parede a cada movimento do hóspede vizinho. Embora tal atitude não fosse necessária, já que Thanatos poderia ser confundido facilmente com um cadáver, tamanha era a sua quietude.

Thanatos costumava dormir de costas, puxava a coberta até a altura do peito e entrelaçava os dedos das mãos deixando-as apoiadas sobre o abdômen. Assim ficava, imóvel. Com todas as luzes apagadas e cortinas fechadas, o corpo inerte do homem era banhado por uma luz avermelhada que teimava em passar pelas frestas da persiana, permanecendo por aproximadamente 5 segundos depois de uma pausa de 2. Ela vinha da placa que ficava na fachada bem ao lado da janela.

Naquela noite o sono profundo de Thanatos foi interrompido por um estalido que parecia um tiro. Ele abriu os olhos imediatamente, mas se demorou a levantar. Na verdade, não sairia da cama se não fosse pela agitação que percebeu no lado de fora. Algumas vozes mais exaltadas, várias ao mesmo tempo, e o latido de um cachorro, propagavam-se pelo quarto.

Thanatos se levantou, estava nu, preocupou-se apenas em calçar os chinelos e sem pressa alguma dirigiu-se à janela. Um grupo de pessoas já se aglomerava no meio da rua ao redor do que parecia ser um corpo ensanguentado, estirado no chão.

Lá estavam os bêbados, as prostitutas, os mendigos, os drogados e as travestis. Esses gesticulavam como maestros que regiam uma sinfonia sem acordes, um coro que não fora ensaiado para uma plateia de poucos que saiam nas janelas dos hotéis baratos. A cena foi amenizada com a chegada da ambulância e da polícia, simultaneamente. E em poucos segundos aqueles personagens voltaram aos seus postos, de onde saíram do meio da escuridão.

Thanatos não alterava o semblante apático e nem a sua respiração dava o menor sinal de qualquer manifestação emotiva. Mas lá no fundo, bem no fundo, algo aconteceu. Ele sentiu um pouco de inveja da pobre vítima, que nem pode ver direito quem era, se homem ou mulher, ou um híbrido de ambos. O fato é que apesar de ter perdido a vida precocentemente, sim, pois ao ter sido assassinada, a pessoa teve o seu direito de cumprir um ciclo natural interrompido involuntariamente, ela pode contar com a atenção de algumas boas almas que a cercaram e solicitaram socorro, na esperança de ainda salvá-la.

- E se eu... pensou.

- E seu eu morresse?

Thanatos olhou ao redor, na penumbra do quarto iluminado apenas pela luz que vinha de fora e concluiu que sua vida valia tanto quanto aquela cama molenga no meio do quarto em cujas paredes o papel de revestimento já estava rasgado. Ele estava nu, se morresse poderiam vesti-lo em alguma coisa qualquer que não gostasse de se ver, ou talvez o enterrariam sem roupas mesmo.

Acendeu a luz e se posicionou diante do espelho. Deixando suas mãos acariciarem seu corpo e percebeu o quão flácido estava. Com os dedos nas faces, esticou a pele para suavizar as rugas.

- Morrendo. Eu estou morrendo para mim mesmo e já devo estar morto para muita gente.

Thanatos virou sua mala, espalhando tudo o que havia nela pelo chão. Vasculhou entre as roupas e encontrou uma pequena e velha agenda, de capa preta, onde havia registrado o telefone e o endereço de algumas pessoas. Finalmente sorriu.

Estava começando a amanhecer.

Thanatos agora demonstrava pressa, borrifou um perfume barato nas axilas, era o que tinha para o momento. Revirou as roupas até encontrar as melhores e se vestiu. O que sobrou, enfiou de volta na mala, guardou o porta retratos e assoviando arrumou o cabelo em frente ao espelho, aquele que o apresentou a sim mesmo, há pouco.

Apalpou os bolsos procurando por algo, voltou para a mala e retirou dentre as roupas a carteira de documentos. De dentro dela, puxou a cédula de identidade.

- Hélio! Exclamou.

- Hélio, é quem eu sou.

O sol entrou pela janela, o despertador tocou e Hélio deixou o quarto, sorridente, não sem antes bater continência ao cenário que o abrigou pelas últimas horas

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